Do que é ser, sou mulher.

Quando demoro a escrever por aqui, qualquer coisa que seja, é como se a dureza do mundo tivesse me capturado de alguma forma. Não que eu seja obrigada a dizer sobre tudo que sinto sempre, mas a escrita me liberta de tal forma, que perder sua constância é como identificar que algo vai mal ou está sendo atropelado. Daí que nesse agora sinto uma necessidade iminente de pôr pra fora o que tenho transbordado em liquidez salgada, ao ler diversos relatos sobre o #primeiroassédio e outras tantas experiências compartilhadas e refletidas entre diversas mulheres de minha convivência e fora dela. 

Estar exposta, revelar de si, sempre será um lugar para o julgamento de outrem, porém valorizo mais da coragem que existe nesse ato, do que cada um poderá interpretar dele. Afinal de contas, cada um sabe do que lhe cabe, o quanto lhe cabe, como lhe cabe.

Observo os ambientes que vivo/já vivi e nem precisaria ir muito longe ao constatar quantos amigos (ou que eu imaginava que o eram) e homens que convivo/convivi se tornaram figuras decepcionantes ao reforçarem suas crenças machistas de vida em atitudes mínimas de convivência.  Das piadas, aos comportamentos e  tipos de tratamento. 

Hoje um texto e um depoimento de mulheres amigas e próximas a mim, vieram como um grande insight e alerta de quanto essa doença machismo pode afetar em longo tempo a vida de uma pessoa, no caso agora exposta, a minha.

Sempre fui uma criança submissa, na Análise Transacional - que pude vivenciar e estudar certo tempo de minha vida - eu seria um modelo perfeito da criança adaptada, pronta a agradar em tudo e a todos. Mas "sempre"? Desde quando sempre? Tenho certeza que não nasci assim, então algo surgiu em algum momento para ser reforçado e posto como 'normal' em meu comportamento.

Tenho uma memória muito forte do que talvez tenha sido a primeira situação de abuso a qual sofri. Era pequena, não sei se tinha ao certo uns 8/9 anos, tenho flashs desse dia e sentimentos que jamais expus claramente de toda a situação. No térreo do prédio, eu, uma outra amiga e um menino que deveria ter nossa idade. Nós duas sentadas em frente a ele, enquanto nos falava de forma imponente e agressiva para fazer o que ele 'mandava'. Um menino que também era uma criança. Não lembro como me desvencilhei exatamente daquela situação, sei do que fui exposta a fazer, do sentimento de nojo e medo, muito medo. Lembro de correr esbaforida as escadas até minha casa, com receio de encontrá-lo novamente, com medo de alguém que era uma criança também. Não lembro se cheguei a contar para meus pais, só lembro que temi. Que a sensação maior era a de me esconder e de nunca mais sair de casa.

Depois ao crescer, outros tipos de situações vieram: ao andar sozinha na rua, ao vestir uma roupa que eu deveria me sentir à vontade, ao me relacionar com o sexo oposto, ao perceber meu corpo de tal forma que nem eu mesma o enxergava. Hoje, depois de muitos anos... desses 20 anos passados percebo o quanto neguei minha sexualidade e o quanto ela pode ter sido e foi deturpada. E tudo isto potencializado ainda ao fato de crescer enquanto uma adolescente "fora dos padrões estéticos" mergulhada em minha criança adaptada

Durante o ensino fundamental eu mal abria a boca para falar dentro da sala de aula e achava isso normal, essa mudez, essa falta de voz. Eu que sempre fui uma criança comunicativa, que aos três anos já contava a história da 'chapeuzinho remelho' para quem estivesse ao meu redor, e que minha mãe tanto tinha orgulho de lembrar... me calei. 

Depois veio o ensino médio, já não era mais tão calada. Até que vivi mais uma situação de abuso. Um professor que dava aulas de artes certo dia em uma determinada atividade de relaxamento resolveu acordar alguns dos alunos com um selinho. Alunas, na verdade. Viemos descobrir isso tempos depois aos relatarmos entre nós a mesma situação. Mais tarde, ainda sem me dar conta de que aquilo não era uma atitude de afeto, nem normal, fui com uma amiga até a casa desse professor com o objetivo de conversamos sobre um trabalho que ele queria desenvolver. Até hoje agradeço por meu pai e minha mãe sempre estarem atentos aos meus caminhos e amizades. Foi por um telefonema de minha mãe, que recebi ainda na casa dele me pedindo para voltar pra casa, que me livrei de uma situação, um outro trauma que não teria mais volta.

Cresci. E cresci me escondendo através da negação da minha sexualidade, pelo que ela poderia provocar fora de mim e me entretendo em paixões platônicas que duravam anos, mas me mantinham protegida em expectativas que eu idealizava e  inconscientemente não queria atrelar às experiências vividas em realidade, ao lidar com o sexo oposto. Hoje, exatamente hoje, eu tive essa consciência. Foram anos até que eu pudesse vivenciar meu primeiro beijo e mais outros até acontecer a minha primeira vez e mais outros até eu me sentir livre verdadeiramente nesse sentido. 

Hoje percebo que ainda sofro de muitas consequências do que vivi junto a essa criança adaptada que criei dentro de mim por tanto tempo. São muitos parâmetros, muitas verdades mentirosas a serem desconstruídas. Pois ainda que mulher, pois ainda que mulheres, existe o machismo - reforçado diariamente - que também nos influencia, que nos limita. Tenho consciência de que esse é um processo longo mesmo, que precisa de muita força, coragem e amor. Principalmente amor a si mesma, a mim mesma. Demorei, ou tive o meu próprio tempo, para me re-descobrir e considero que agora tenho mais certeza do caminho a seguir, principalmente ao mirar as mulheres que tenho/tive a minha volta, que são potentes referenciais. O importante nesse presente-futuro é que gente se saiba essência, se permita ser, desenxergue os limites, a tal da culpa (essa palavra lazarenta!), se una, se junte pr'os imensos horizontes que ainda precisamos viver.  Eu tô viva e tô vivona, comigo e com vocês. Vamos juntas!


Foto: Anderson Zeg.

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