Duas maltrapilhas numa noite turva.

Noite de chuva em um resto de domingo. Ponto de ônibus da ladeira da Barra. Algumas pessoas se amontoam para fugir da água.

Duas bufonas estão próximas dalí, a chuva cai e elas precisam se proteger não só das mazelas que lhe afligem, mas daqueles pingos que resolveram incomodá-las no meio da noite.

Chegam até o ponto assustando aos poucos que lá se encontram.
Uma figura masculinizada, que só mais tarde se revelaria o contrário, dá ordens a outra figura perdida. Provavelmente alguém com dificuldades mentais, de corcunda sobresalente, a mão disposta na boca e andar troncho, tem um corpo magro esquálido e cabelos curtos.

Aquela que dá ordens é responsável por toda a organização dos acontecimentos seguintes.
Sentam-se no banco do ponto, o que ninguém antes tinha se atrevido a fazer, e com seus pertences, coisas, bagulhos iniciam a arrumação de algo.

Na verdade aquela figura mais frágil apenas observa, enquanto a outra dona daquele momento continua a falar, reclamar algo. De repente um papelão é jogado ao chão da rua, no meio noite chuvosa e com a sua platéia de 'cantos de olhos', ela profetiza em sua voz rouca e firme: "vai levando...!".

Seriam apenas palavras simples, se não estivessem dentro daquele contexto. É também, quem diria, uma permissão para que a outra figura que a acompanha dê um riso contido e logo depois que sente que tudo alí, naquele momento, está permitido, entoe uma risada contínua, como se risse da própria desgraça. Um som engraçado, um engodo.

As duas agora preparam-se para um momento especial daquela noite, o jantar, alí cheio de testemunhas. A mais velha, da voz firme e agora profeta, tira uma vasilha de macarrão escondida em meio aos farrapos que leva. Faz frio e elas se protegem como podem. Ela começa a divisão do seu manjar entre as duas, o cheiro de comida caseira perfuma a rua.

A figura sisuda separa a parte de sua companheira que observa todos os detalhes, segurando seu prato à mão e uma colher, que mesmo depois da comida servida é abdicada a escolha da sua própria mão para comer aquele macarrão quase laranja.

Enfim, as duas jantam. Respeitando alí as suas funções, uma come na própria vasilha do macarrão ficando com a maior parte da refeição e a outra, concentrada em um prato a parte, continua se deliciando com ajuda da mão. Um conselho ressoa em meio a voracidade alimentar: "mastigue!", orienta de forma contudente a mais velha. Ela explica que só pode engolir por um dos lados da boca, talvez tenha algum problema dentário.

As duas agora comem em silêncio, também há no prato, além do macarrão com cara de insosso, uma carne picada pálida, outrora inclusive já reclamada pela figura mandona: "não gostei dessa carne...".

Terminam sua ceia e interagem com alguns que ainda se fazem presentes no ponto. Mesmo com toda intimidade exposta e compartilhada elas ainda têm o poder de assustar.

Aos poucos vão arrumando novamente as tralhas, sempre com toda ação, iniciada e comandada pela figura profeta-sisuda-reclamona. A própria, junta as vasilhas usadas em um saco qualquer e em nova ordem pede para que a sua fiel escudeira pegue "o cobertor".

Sempre obediente, ela volta com um plástico do próprio tamanho. Está na hora de fazer a sua cama, no chão. Enquanto isso a outra acomoda-se naquele mesmo banco que já foi mesa de jantar, sempre a resmungar "que nada!".

Está tarde, já quase não há mais pessoas no ponto e finalmente é hora de findar aquele dia. É então que num resquício de misteriosa fé, aquela senhora que agora está alí deitada com seus maltrapilhos e com sua grande companheira próxima aos seus pés, se despede dos que estão presentes: "boa noite, vão com Deus".

**Baseado em fatos reais.

Comentários