Se minha mãe fosse biografia.

Uma página em branco na agenda. Nela está datado: 13 de janeiro de 2012. Além de ser também uma sexta-feira, é uma das poucas folhas que ainda estava sem nada escrito. Pensei: sinal de sorte. Daí o resto foi minha confusa memória que ajudou a escrever... 

Minha mãe, no auge de seus 63 anos, se despediu desse mundo nascendo flor em outro jardim. Minha mãe, quem sabe minha irmã numa outra encarnação, me deixou as melhores heranças em forma de aprendizados de vida. Já fazem sete meses e a cada mês, nasce uma nova saudade.

Manauara, profissional das letras, professora daquelas inesquecíveis. Descobriu sua profissão bem cedo, por conta de uma peça bem pregada do destino. Quando menina imitava para seus colegas um professor que estava fora da sala de aula. Pois calhou do próprio dar-lhe um flagra, bem no ápice de seu momento de inspiração. Como castigo a encubiu de dar aulas para alunos de uma outra turma, e mais velhos. Uma responsabilidade que não lhe aquietou mais.

Engraçado que mesmo sendo uma aquariana danada de sonhadora, ela sabia pisar muito bem os pés na terra. Era uma mulher determinada, seguindo cada um de seus objetivos. Estudar , por exemplo, sempre foi uma de suas prioridades. E como ela gostava dos livros, de livros! Talvez esse tenha sido um dos seus maiores investimentos de tempo: ler e aprender. Daí também "o ensinar" acabou se tornando consequência, ou mesmo o exercer de um dom. E ela o tinha.

Em casa minha mãe também exercia a função redundante de "mãe professora". Lembro que sempre que eu ou minha irmã tínhamos alguma dúvida sobre uma palavra ela nos indicava o dicionário. Devo admitir que esse tipo de leitura desde cedo e a convivência com ela por si só nos deu um vocabulário muito mais rico.  

Sensível, engraçada, inteligente, prestativa, de uma calma invejável, se revelava mulher de todos os encantos. Não à toa que suas qualidades se tornavam gostosas surpresas quando reveladas, tal qual quando começava a cantar. Das histórias preferidas que ouvi de minha minha mãe, a de "Sueli Silva" -  seu codinome enquanto cantora - é uma das que mais gosto. 

Na época de sua mocidade qualquer contato com arte ainda era visto com muito mais "pré-conceitos" que nos dias de hoje. Mas como já disse antes, dona Therezinha sempre foi mulher de fazer acontecer. Um belo dia durante um festival de música em sua cidade, resolveu dar vida a tal Sueli Silva, a cantora de breve sucesso e carreira também. No mesmo dia uma tal vizinha foi comentar com vovô Gerônimo o quanto a Sueli se assemelhava à sua filha Therezinha. Não fosse vovô tão esperto, quanto seu cinto, de repente hoje eu teria tido uma mãe cantora. 

Pois mesmo com a carreira de cantora tendo sida tão prematura, minha mãe sabia usar bem  as palavras, e ainda que em outra melodia partiu para a declamação. Na verdade, declamar era algo que ela já fazia desde criança. Lembro que ela contava o quanto ficava nervosa ao declamar nos eventos do colégio de freiras em que estudava, em seus mínimos 8 anos, e como as freiras adoravam e enchiam-lhe de poesias.

Talvez esse tenha sido mais um dos combustíveis que alimentaram sua alma romântica.  Fora "Sissi, a imperatriz", "Amor de Perdição", Ronnie Von! Era uma verdadeira colecionadora de histórias de paixões platônicas e amores dignos de emocionantes enredos novelísticos ou cinematográficos. Eu tive uma mãe musa, e essa é uma certeza. Teve a história de um namorado ciumento que a via em todo e qualquer lugar, e quase deixou inutilizado o nariz de um outro rapaz inocente. Teve aquele outro que era tão bonito, tão bonito, que perto dele ela quase ficava menos bonita. Teve o rapaz que ao paquerá-la no meio da rua, bateu a moto no poste e quase embarcou num vôo antecipado para o céu. E teve o que foi o grande amor de sua vida. Um não, talvez dois.

Um era memória boa, de vez em quando ela o falava com brilho nos olhos, e o quanto se arrependia de ter o deixado para trás pelas convenções dos relacionamentos, dos pertencimentos alheios, pela posse, ou mesmo vaidade de sua juventude. O outro foi meu pai, arrebatador. Depois de cinco anos de estudos e trabalho no Rio de Janeiro, ela foi parar na Bahia. "Passar uma tarde em Itapuã..." e nunca mais voltou. Namoro, casamento, filhas. Desafios, escolhas, novos sonhos.

Acho que da maior parte das coisas que imaginou, muito ela realizou. Soube aproveitar dos desafios, e não foram poucos. Os preconceitos ao vir (para) e que sofreu na Bahia, de se manter em sua profissão, de cuidar de duas filhas quase sem intervalo, de ser independente, de viver sem sua mãe desde cedo, de estar longe da família por buscar seus sonhos de perto. Também tiveram as coisas boas... poder viajar e conhecer todo o Brasil em sua profissão, estudar tudo que teve vontade, da análise transacional às cores, amar profundamente, fazer amigos para toda uma vida, marcar tanta gente através de seu saber e se tornar de fato uma  pessoa inesquecível.

Gosto de lhe ter assim, mulher guerreira. De seus defeitos, pouco lembro. Quero ter guardado em mim, além de tudo que já escrevi até aqui, que foi ela quem me ensinou que a vida é breve e a luta é brava. É preciso querer e estar disposto. É preciso cuidar e ser cuidado, se permitir. E quanto me dói tê-la apenas em memória. E é estranho... querer tocar, ouvir, perguntar, estar com alguém que não está mais, mas está. É, ela está. Ela e seu picolé de cajá, em forma de último desejo escondido do médico. O segurar de sua mão: "mãe não vá", "mãe vá, por favor". Suspiros, a mão solta. O sangue que já não corre mais, os olhos fechados. Era pra valer e a vida continua para mim, sem ela. A mulher que me ensinou que "coisas boas toda vida" é regra, e que "as palavras tem força". Mostrou que até na despedida, o sabor à vida é a gente quem dá, e a dela teve sabor de cajá.





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