Liberdade às avessas.

Em janeiro de 2012 quando minha mãe floresceu em outro jardim, passado certo tempo depois, juro - por mais mesquinho ou covarde que pareça [tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas] - pensei que não haveria sentido maior pra viver nesse mundo. E veja, não falo que haja maior sentido na morte, nem de vontade de morrer, mas sim da graça na vida, de haver profundidade no viver. Era como se por um momento nada fosse como antes, e não era mesmo. Uma lembrança-aprendizado-marcante, que tenho do dia de sua cerimônia de passagem, é a de observar durante o caminho para o cemitério, os ônibus passando, as pessoas em suas rotinas normais, o céu no mesmo lugar, mesmo que pra mim fosse tudo novo, e era mesmo. Agora, no último dia 05 de outubro de 2014, a despedida vem mais uma vez fazer parte do caminho. Pra relembrar que nada nessa vida é estável, permanente ou romanticamente eterno. Bem sei, que o amor não deveria ter prazo e talvez não tenha, visto a sua capacidade de transformação. Cindy, era a mascote das Uerbas. Chegou em casa na mão de minha irmã e tempos depois de meu pai avisar: - no dia que entrar um cachorro nessa casa, eu saio pela outra porta! Dias depois ele não haveria mais era de sair de casa. Cindy iria aos tantos nos ensinar sobre o companheirismo e a lealdade, dos sentimentos que sobram nos animais e às vezes faltam na humanidade. E dói a lembrança em todos os pequeninos momentos que tem muito mais significado quando na certeza da falta. Cindy foi marcante em nossa família, pra todos, definitivamente. Acompanhou várias fases de transição de nosso lar. Era minha sobrinha, meus zói de azeviche, meu pedido carinhoso de "seja eterna pra sempre, por favor", minha "dá a benção da tia Lari" (e no colo de minha irmã punha as patinhas sobre minha cabeça), era reclamação pra enxugar as patas lavadas depois de um passeio na rua seguido por uma farra fantástica de MMA com a toalha, era biscoitinho nas permanências em casa das saídas das Uerbas, era banho de sol na varanda em manhã de domingo, era pedido de dengo dos dias de trabalho em casa, era o recostar de cabeça em pernas estendidas na cama, era dormida de conchinha, era dupla de dança sem sentido, era latido de aviso de chegada e pedidos de carinho na permanência dos que chegavam, era o olhar em que morava uma lua minguante, era um tipo de amor que jamais se repetirá, por ser único, original, do jeito que só Cindy era e se dava. Agora, escrevendo essas palavras chego mais uma vez à óbvia e dolorosa conclusão que adultecer não é fácil e nunca estaremos preparados pra dor, por mais que já velha conhecida, porém de instâncias e medidas diferentes, quiçá libertária. Hoje temos portas de casa abertas, bolsas escancaradas no sofá, a obrigação de recolher os farelos de comida que por acaso se espalham ao chão, o silêncio ao chegar, a falta de despedida ao sair... mas nem tudo é tristeza, é que reforçando essa contradição ridícula que é a vida, Cindy nos deu uma liberdade às avessas, nos ensinando agora sobre generosidade. Eu só tenho a agradecer pela sua companhia nesses quase 14 anos (que se completariam em 11/11/14), pelo dia em que chegou em nossas vidas, pela participação nesse roteiro ainda sem fim e por ter sido esse pedaço inesquecível de uma história de amor, esse que se transforma independente de qualquer fim.









Comentários